"Crônicas para colorir a cidade, seu mais recente trabalho, sensibiliza aos leitores com uma linguagem apurada e histórias inesquecíveis. Os meninos daqui sobem ladeiras distraidamente. Isso é grave. É importante refletir durante a subida. Mas não são revestidas de pedras as ladeiras por onde passam os meninos. E, sem as fendas que entremeiam os paralelepípedos como nas ladeiras que se prezam, não há como refletirem enquanto sobem. Não há batentes tingidos de azul pelo caminho dos meninos. Nem torres pontiagudas pintadas de amarelo em velhas igrejas. Torres que protegem sinos, enfeitadas de pequenas aberturas que lembram janelas arredondadas, adornadas com uma espécie de reprodução de renda servindo de moldura. Desmascarada pelo tempo, a brancura das imitações rendadas ganha novos pontos de bolor todos os dias. Aves de importância menor ocupam os espaços. Os meninos daqui não contemplam esse cenário. Não conhecem verdes venezianas. Nem o castanho escuro das tramelas.
Os meninos daqui não têm hábitos de pôr do sol. Assistem aos bocejos de portas de aço cinzentas que se encerram pelas seis horas. O espreguiçar de folhas de latão. Antigamente, seis horas da noite era momento de contrição. De rezar Ave-Maria e tomar água-benta. Faz tempo que eu não rezo Ave-Maria. Sem companhia, não gosto. Água-benta também não engulo há anos. Acho que os meninos daqui não sabem rezar Ave-Maria. Nem nunca engoliram água-benta.
A poesia dos meninos daqui é construída com as letras e os numerais que levam as placas dos ônibus. Com os nomes frios de ruas, batizadas sem critério algum. Não tem batente azul ou torre amarela no caminho dos meninos. Por isso, suas poesias não falam sobre coisas admiráveis. Tramelas castanhas não guardam o sono dos meninos daqui. A Ave-Maria das seis horas não torna seus corpos invisíveis. O som de verdes venezianas se abrindo não é trilha sonora matinal em seus domingos.
Os meninos daqui vivem intranquilos. Ninguém mostrou a eles a ressequida fatia do pão de Santo Antônio habitando a lata de mantimentos, garantindo bonança. Ninguém os aconselhou a dormir cedo, porque o sono alimenta. Por isso, eles circulam indecisos.
As cores que os meninos distinguem pela cidade são repetitivas. Uma aquarela limitada em tons desmaiados de fraqueza. Matizes anêmicas, sangue ralo. Ouso o desejo de colorir a cidade para os meninos. Ouso projetar tingir os muros. As tábuas. Os colchões espalhados sob o experiente viaduto. Os cobertores leves-ásperos, confeccionados com material barato. Ouso planejar distribuir cantis de água benzida para purificar os corpos. Cantis em cores divertidas que se tornariam, no futuro, doces lembranças para os meninos daqui. Daqui. Dessa cidade. A cidade por onde caminho agarrada aos meus pavores. Aos meus desesperos. Por onde aguardo que o semáforo se avermelhe, enquanto seguro firme a mão dos meus rancores antes de atravessar para o outro lado. Dos meus temores, que nunca amadureceram. Eternas crianças cirandando ao meu redor. Zelo pela integridade dos meus receios. É meu dever trazê-los em absoluta segurança. Nutridos. Sadios.
Eu queria rezar uma Ave-Maria com os meninos daqui. Decorei a ladainha, mas nunca aprendi a fazer o sinal corretamente para finalizar em nome do pai e do filho. Não sei por qual lado começo. Tenho medo de fazer errado e levar castigo. Quem haverá de confiar em mim, que nem mesmo sei fazer o sinal?
Resisto ao cansaço. Queria que muros altos se erguessem em volta do lugar por onde perambulam os meninos. Onde vago. Teríamos, então, nossa cidade íntima. Colorida. Não circularíamos mais entre os que nos desprezam. Entre os que nos suportam protocolarmente.
São Paulo, novembro de 2022"
Descrição
Informação Adicional
Autor | LILIA GUERRA |
---|---|
País | Não |
Idioma | Não |
Encadernação | Não |
Formato | Não |
Origem | Não |
Edição | Não |
Ano | Não |
ISBN | 9786558644262 |
Editora | EDITORA PATUÁ |
Ano da Edição | Não |
Tradutor | Não |
Páginas | Não |
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